Preto e branco, as patas e o nariz cor-de-rosa, ele tava caçando uma bolinha de papel que eu tinha feito com um rascunho de rabisco.
Devia ser fácil ser um gatinho, gordinho e rosado, que brinca o dia inteiro com bolinhas, come e dorme.
Isso se a gente romantizar e simplificar toda a existência do gato, claro.
Isso se a gente fingir que gatos não se assustam, não sentem raiva e nem morrem de medo de ser abandonados, isso se a gente ignorar ou não acreditar que gatos são seres cheios de magia, seres que têm a capacidade de limpar as energias ruins do ambiente, eles puxam tudo pra si e depois lidam com todas as coisas horríveis que os humanos sem querer trazem pra casa.
Nada é de fato fácil ou simples, nem ser um gatinho ou um leão, nem ser uma planta ou um gás.
Menos simples que isso é ser alguém que não confia na própria cabeça.
Quando eu tinha 14 anos fui diagnosticado com transtorno paranóico esquizofrênico.
Desde então eu não confio mais nas coisas que as pessoas, que as outras pessoas não enxergam, me dizem.
Não confio porque, assim como pessoas que existem, as que só existem na minha cabeça também gostam de me enganar e assustar, só pra ver minha reação ou rir de mim, não sei.
Sei que só tem uma ou outra pessoa que não existe que eu confio e gosto, uma delas é o meu avô, eu sei que ele morreu antes de eu nascer, mas ele voltou pra mim em forma de alucinação e cuida de mim como meu pai cuidaria, se não tivesse me abandonado, meu avô faz tudo por mim e sorri toda vez que me vê.
Outra pessoa que só existe pra mim e que por acaso eu consigo confiar é a Julia. Ela é minha namorada.
Vi ela pela primeira vez na escola, estava sentada em um banco, debaixo de uma árvore, lendo o meu livro preferido e ouvindo meu disco predileto (Franny & Zooey e Narrow Stairs, respectivamente), desde então a gente não se desgruda. Eu acho meio chato que ela só aparece pra mim quando ela quer, mas é sempre um alívio ver o rosto que eu fantasiei tão perfeitamente pra me agradar.
Antes de eu ser diagnosticado, minha mãe me tratava como o filho excêntrico, engraçado, criativo e que falava sozinho às vezes, porque, segundo ela, eu era inteligente demais.
Ela estava sempre me justificando pra todo mundo como podia, me amava muito e detestava que falassem coisas sobre mim.
Mas desde que disseram pra ela que eu tinha uma doença mental ela decidiu que tudo que já tinham falado sobre mim era verdade, que eu tinha enganado ela propositalmente durante todos esses anos, ela passou a me odiar e me ressente como se eu, de propósito, tivesse matado o filho dela.
Falar sobre isso me deprime muito, porque eu só tenho 17 anos e ainda sou obrigado a morar com ela, minha própria mãe que me trata como o pior inimigo dela.
Nunca apresentei a Julia pra ela porque eu sei que ela é uma alucinação, mas parece que cada vez que ela vê que eu estou vendo a Julia fica com mais e mais ódio de mim.
É como se eu tivesse uma doença de propósito, só pra fazer ela sofrer.
Às vezes eu deito de noite e fico fantasiando que o meu pai voltou, que ele só foi embora porque, sei lá, teve que salvar o mundo, porque ele enxerga pessoas invisíveis que nem eu, que na verdade eu não tenho uma doença, tenho um dom e vou salvar o mundo. Só que pensar isso me deprime, porque eu sinto como se tivesse traindo o meu avô, que é e sempre foi o meu pai de verdade.
Olhar o gato se espreguiçando enquanto toma sol me faz sentir bem de novo e parar de pensar nessas coisas.
Pego uma roupa no armário e entro na minha banheira quente, a água me envolve e meu corpo se aquece lentamente, Dr. Fofloco bate com a patinha na água e se arrepende imediatamente, saindo do banheiro.
Queria poder nunca parar de tomar banho, ficar aqui na água sempre quentinha, sempre perfumado, longe de todo mundo, só eu, a água e, às vezes, o Dr. Fofloco com sua carinha de surpresa e nariz rosa. Eu gosto de ler no banho, mas isso já me fez perder muito mais livros do que eu gostaria, então me limito a olhar pro teto de geso com adornos florais e pensar nas pessoas que têm habilidade com as mãos, esculturas, pinturas... Eu sempre tento desenhar, mas não acho que nunca na minha vida tenha feito um desenho. Fiz rabisco, rabisco eu fiz, desenho nunca.
Às vezes, eu me pergunto o que a Julia vê em mim, eu sou louco, não tenho amigos e não sou nada bonito. Isso é outra coisa que mudou desde o meu diagnóstico. Todo mundo vivia me dizendo que eu era bonito, lindo, muito apresentável, um rapaz muito charmoso, essas coisas, mas, depois que fui diagnosticado, ninguém nunca mais me elogiou, nem pessoas, nem o espelho. Minha mãe me odeia mais ainda, agora que eu sou feio.
- Queria saber de onde você tira essas ideias.
- Que ideias?
- Isso aqui é algum trabalho de escola?
- Isso é o meu diário, mãe, larga o meu diário.
- Diário? Você tá dizendo aqui que não tem pai, não tem avô e nem namorada, que você é esquizofrênico, que eu te odeio, que diário é esse?
Meu filho começou a chorar e correu pro quarto.
Eu leio um negócio perturbador desses e, ao invés de me contar porque escreveu aquela porcaria, meu filho começa a chorar e vai se esconder no quarto.
Que que eu fiz pra merecer um filho desses?
Assim que o pai dele chegar eu falo essas histórias e esse menino vai levar uma coça, eu quero ver ele me acusar de odiar o meu próprio filho de novo. Eu quero ver.
Anastácia saiu da cozinha perturbada, triste, sem entender o porquê de ter lido as coisas do filho, ela nunca fazia isso, agora tinha feito e estava se sentindo desse jeito, sem entender nada, sem poder confiar na própria cabeça.
Era um inferno ser Anastácia, ela odiava ser Anastácia e amava ser Lucas, era Lucas que ela era, que ela sempre quis ser, era Lucas que tinha clareza de ideias, que as pessoas respeitavam, que o filho era normal, era engraçado, Anastácia queria ser Lucas, mas não era, só tinha sido duas vezes e ela não lembrava bem como, nem quando, nem o que ela tinha que fazer pra conseguir se sentir sob controle de novo.
Era só preparar a janta, era só picar os legumes, colocar manteiga na panela, jogar a cebola, deixar tudo refogadinho, cheiroso e nutritivo, era só ela comer uma refeição quente e confortante, aí ela podia chamar o filho dela do quarto, tudo ia ficar bem, ela ia entender as coisas de novo.
Ainda bem que eu lembrei de lembrar da comida, a comida é muito importante.
Os temperos estalando, o cheiro de arroz fresco, sorte que a gente tem o que comer.
Que Deus nunca nos deixe faltar comida, amém.
Anastácia refogou berinjela com cebola e pimentão, fritou um ovo e fez arroz fresco:
- Desce, filho, tem comida.
O menino desceu assustado e triste, ele sabia que a mãe odiava ele, mas confundir mais a cabeça dele, dizer que ele tinha um pai, que tinha avô, que tipo de brincadeira doentia era aquela? E agora preparara uma janta, tinha chamado animada, feliz.
- Já já seu pai vai chegar.
- Mãe, para.
O telefone tocou, minha mãe esticou a mão pra atender e saiu da sala cochichando.
Ouvi ela soluçar, toquei seu ombro:
- Mãe?
- Eu vou ser presa, eu vou ser presa, eu vou ser presa.
- Mãe, como assim, olha pra mim, fica calma, presa por quê?
- Porque descobriram.
O telefone tocou, minha mãe esticou a mão pra atender e saiu da sala cochichando.
Ouvi ela soluçar, toquei seu ombro:
- Mãe?
- Eu vou ser presa, eu vou ser presa, eu vou ser presa.
- Mãe, como assim, olha pra mim, fica calma, presa por quê?
- Porque descobriram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Dúvidas?